Maricá em foco nº 12





Comemoração de 20 anos da Companhia de Teatro Os Satyros

LIZ:
“Um espírito estranho está unido ao meu. É como ter duas almas. E essas duas almas combatem.
Uma parte me produz impulsos diabólicos, a outra, sentimentos divinos. Sinto ira, uma ira irreprimível, e sinto a paz própria dos eleitos. E punções de agulhas me ferindo, e a visitação da Glória. E um grito quer escapar da minha boca, um grito surgido das minhas duas almas em uníssono, um grito de horror e alegria. As duas almas me dizem com feracidade, com amor: “as coisas vão mal em você, na sua ilha, no seu governo, olha, olha como tudo, até a luz, está morrendo, está morrendo, está morrendo”.

O que é poder? O que é exercê-lo? Para que, por que? Onde estão os erros implícitos na arte de governar?
O texto de Reinaldo Montero, escritor cubano, que recebeu o Prêmio Fray Luís de León, pela peça “Liz”, coloca a rainha Elizabeth I como protagonista de um tempo caótico, de grandes tensões, emoções e descobertas. Foi durante o longo governo de rainha Elizabeth I que o teatro inglês floresceu, sendo Shakespeare foi um dos autores que viveram durante essa época, umas das mais criativas do teatro.
O poder e a grandeza de Elizabeth I são destacados, assim como sua solidão e fragilidade. Em suma, uma peça que critica o poder, a cultura, as verdades oficiais.

Os Satyros comemoram 20 anos de Companhia de Teatro. Muitas digressões, prêmios e polêmicas. Um grupo de pessoas que se juntaram para contar histórias que ainda não foram contadas ou recontadas sob uma nova perspectiva.
Chovia a cântaros. Chegamos ao Espaço Cultural Sérgio Porto no Humaitá as 21hs, pegamos nossos convites, gentilmente cedidos pela Companhia para a equipe do Maricá em Foco, e entramos.
O trabalho de direção de Rodolfo Garcia Vazquez é sempre uma obra de arte, e faz isso a cada espetáculo, em graus diferentes de expressão. Ele tenta sempre criar uma boa ilusão visual, dinâmica, que leve o espectador para dentro da cena, fazendo com que se sinta parte daquele momento na vida dos personagens. Rodolfo não tem pudor. E a Companhia é famosa por montar e criar textos de dramaturgia alternativa. Na maior parte da vezes, que “incomodem” de alguma forma quem está assistindo.
O cenário é feito tecidos que incrementam o ambiente e tem funcionalidades alternativas para as cenas mais movimentadas. O figurino, muito bonito, muito bem pensado, é praticamente um complemento visual rebuscado para o cenário simplificado.
A trilha sonora de Ivam Cabral, um dos fundadores da Companhia, também teve seu destaque, principalmente nos momentos de mais tensão ou emoção, no qual a música entra para intensificar o trabalho emocional dos atores e envolver o público.
A peça teve momentos dramáticos e engraçados, abrangendo também os mais apreciadores de um pouco de humor. Mesmo esses momentos, quando não carregados de ironia, eram uma crítica escancarada ao puritanismo e a hipocrisia.
O trabalho de interpretação dos atores, geralmente dos que trabalham na companhia, são inquestionáveis. Com destaque para a protagonista, Cleo de Paris (Liz), com um trabalho de voz poderoso, uma presença de palco de peso e uma beleza radiante.

Ivam Cabral, no papel de Marlowe, (escritor contemporâneo a Shakespeare), refletindo seus muitos anos de palco com um grande momento dramático no qual indaga: “Deus onipotente, poderia criar uma pedra tão pesada que você mesmo não seria capaz de levantar? Deus onisciente, tem certeza de que os justos herdarão seu reino?” e levanta o microfone que tem nas mãos para o céu a espera da resposta de Deus, que permanece em silêncio. Ao direcionar o microfone para a plateia, também ninguém ousou responder. Germano Pereira, há muitos anos na companhia, também consegue um à vontade em cena, digno dos grandes atores. E entre os destaques, Silvanah Santos, atriz premiadíssima, conhecida como um mito do teatro paranaense. Silvanah, dessa vez, abriu mão do protagonismo gentilmente, em prol do trabalho de grupo. Ela, com seu grande magnetismo, nem precisaria falar. Apenas entra em cena, observa, comenta, e mesmo em silêncio, nossos olhos permanecem nela. Quem assistiu a peça “A mais forte” de Strindberg e viu Silvanah protagonizar a personagem que não pronunciava uma palavra, sabe do que estou falando.
Todo o trabalho artístico tem o seu mérito e o dos Satyros, não pode ser medido apenas por um espetáculo, mas pelos vinte anos de carreira, de sucesso, de uma busca incessante de novas formas de fazer e experenciar o teatro. Considero que a função primordial do teatro hoje, seja primeiro fazer com que as pessoas gostem de teatro e que quando lá estiverem, que possam se identificar, que vejam vida real na ficção, que sintam, que vibrem, que se emocionem. É talvez, retirar o público de seu estado confortável de mero espectador e faze-lo questionar tudo o que está acontecendo naquele momento. Porque se for para mostrar algo que já é conhecido, previsível, interpretar um clássico de uma forma clássica que todo mundo já conhece, talvez nada seja acrescentado e mais vale ler a peça sentado no sofá.
O espetáculo terminou com as palavras da atriz Cléo de Paris, para o público:
“Vocês hoje foram um público abençoado, por estarem aqui, num dia chuvoso como este, principalmente sabendo que carioca não gosta de sair de casa quando chove. Muito obrigada.”
Nós também agradecemos!

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